domingo, 5 de outubro de 2008

John Holloway: Mudar o mundo sem tomar o poder

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Já publicáramos um post sobre o projecto "Economias alternativas, sociedades alternativas". Nesta ocasiom traduzimos as verbas de John Holloway, teórico do movimento autónomo entre outras cousas (um pdf no que se debate a sua obra pode-se atopar aqui).
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O meu nome é John Holloway e vivo em Puebla, México. Ensino ali na universidade, na área de sociologia. Suponho que o meu principal interesse é a crítica ao capitalismo e o tentar pensar em como podemos chegar a escapar desta terrível sociedade que criamos e criar um mundo mais humano.
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Se se analisa a experiência do século passado, a experiência revolucionária dos governos na Rússia, na China, em Cuba -aínda que Cuba seja um caso mais complicado- ou se olha para a experiência de governos reformistas, dos governos que chegárom ao poder através de eleições, penso que é universalmente umha tremenda decepçom, umha desilusom terrível. Em nengum caso foi capaz um governo de esquerdas de pôr em prática o tipo de mudanças que queria o povo que luitara pola sua vitória. Em todos os casos o que tem resultado é a reproduçom das relações de poder; talvez umha mudança nas relações de poder, mas a reproduçom de relações de poder que excluem o povo, que reproduzem injustiças materiais, que reproduzem umha sociedade que nom se auto-determina. Reproduz-se umha sociedade na que o povo mesmo nom determina o desenvolvimento dessa sociedade. Suponho que o meu argumento é que isto se pode analisar historicamente: na Rússia aconteceu por este e por estoutro motivo, na China aconteceu por isto e por aquilo, o mesmo na Albânia, em Cuba, no Brasil, etc. Mas entom chega-se a um ponto onde nom é suficiente falar sobre isso em termos de processos históricos específicos. É óbvio que temos que tentar generalizar. A conclusom mais óbvia é que simplemente hai algo errado na idea mesma de tentar transformar a sociedade por meio do Estado. Isto tem a ver com a própria natureza do Estado, com que o Estado nom é apenas umha instituiçom neutra, mas umha forma específica de relações sociais que surgem com o desenvolvimento do capitalismo. E que é umha forma de relações sociais que se basea na exclusom do povo do poder, que se basea na separaçom e na fragmentaçom do povo.

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Mudar o mundo sem tomar o poder significa isso mesmo, ou seja, que temos que mudar o mundo, isso está claro. E que temos que fazê-lo de tal forma que nom se deve pensar na luita para mudar o mundo como numha luta centrada no estado e na toma do poder estatal. É importante desenvolver as nossas próprias estruturas, as nossas próprias maneiras de fazer as cousas. Um aspecto central do argumento é que é importante fazer umha distinçom entre dous conceitos de poder. Que o conceito de poder esconde um antagonismo, um antagonismo entre o nosso poder de fazer cousas e o nosso poder criativo, por um lado; e o poder de mandar, o poder instrumental do capital, por outro lado. Noutras palavras, se me preguntam o que significa poder, a resposta mais óbvia é que o poder significa a nossa capacidade de fazer cousas. Este poder, parece-me, é sempre um poder social, polo simple feito de que o que faga umha persoa depende sempre dos feitos de outros. É mui difícil para mim imaginar umha acçom que nom seja dependente das acções de outras persoas. É claro que o nosso fazer aqui neste momento depende do fazer de centenas ou milhares de pessoas que criárom a tecnologia que estamos a usar, que criárom os conceitos que estamos utilizando, etc. O poder de fazer tamém é um poder social, sempre é um poder colectivo, o nosso fazer é sempre parte do fluxo do fazer social. Se pensamos no nosso poder para fazer como parte de um fluxo de fazer social, é evidente que nom hai umha clara divisom entre as acções de umha persoa e as acções de outra. Umhas conduzem às outras; o que umha persoa tenha feito torna-se a precondiçom das acções de outros, de umha forma na qual nom existem distinções claras. O que acontece entom baixo o capitalismo é que este fluxo de acções é quebrado, porque o capitalista vem e di: "Isso que você fixo é meu, aproprio-me del, é da minha propriedade". E como o que umha persoa tenha feito é a condiçom prévia do que outros fagam, entom a apropriaçom polo capitalista do que foi feito dá-lhe a capacidade de mandar nas acções dos outros. Através disto, o poder social quebra, transforma-se no seu oposto, que é o poder dos capitalistas para dirigir as acções dos demais.

O capitalismo é basicamente o processo que permite quebrar este fluxo de fazer social, quebrando a sociabilidade da acçom e, portanto, anulando o nosso poder de actuaçom para transformá-lo num poder superior, em algo alheo a nós. Entom, temos que pensar na nossa luita nom como na luita para ter poder, o que significaria apoderarmo-nos do seu poder, senom como a luita para construir o nosso “poder fazer”, que seria inevitavelmente um poder social. E é importante ver que nesta luita hai dous conceitos mui diferentes de poder, e que cada conceito tem a sua própria lógica, umha lógica bastante distinta. A lógica do capital é umha lógica de mando, de hierarquia, de fragmentaçom. É umha lógica que nega a subjetividade, que objectifica o sujeito. A nossa lógica é justamente o contrário, é a lógica da convivência, da recuperaçom da subjetividade, o que é negado polo capital. Subjetividade nom individual, senom social. Isso constitui duas formas mui diferentes de pensar, duas formas mui diferentes de atuar. Para nós tentar mudar o modo de pensar da sociedade significa ter confiança na nossa própria forma de acçom, no desenvolvimento auto-crítico das nossas próprias formas de pensar e de agir. Outra forma de colocar a questom é considerar a luita para mudar a sociedade como luita de classes, em cujo caso é fundamental ver essa luita como assimétrica. Umha vez que começamos a reproduzir as suas formas e a pensar a nossa luita como o reflexo da sua, entom simplemente estamos a reproduzir o poder do capital dentro das nossas próprias luitas.

A revoluçom que tenho em mente pode ser considerada mais como umha pregunta que como umha resposta. Por um lado, é evidente que precisamos de umha transformaçom da sociedade dende a base; por outro lado, é evidente que a via tentada ao longo do século passado de transformar a sociedade por meio do Estado fracasou. Isto deixa-nos com a conclusom de que devemos tentar o câmbio de outra forma. Nom podemos simplemente desistir da idea de revoluçom. Coido que o que tem acontecido nos últimos anos é que as persoas tenhem chegado à conclusom de que, já que a transformaçom da sociedade através do Estado nom funcionou, a revoluçom é impossível na prática. O meu argumento é justo o contrário; é que, de facto, a revoluçom é mais urgente que nunca. Mas isso significa repensar como podemos fazê-lo, tentando encontrar outras maneiras. Neste momento, nesta fase, o essencial é colocar a questom e tentar pensar como é que se pode desenvolver. Penso que é importante pensar que a revoluçom é mais umha pregunta que umha resposta, porque o processo revolucionário em si tem que ser entendido como um processo de preguntas; nom de povos dizendo quais som as respostas, senom como um processo de implicar o povo num movimento de auto-determinaçom.

Esta é umha resposta mui geral, obviamente; mas penso que podemos enché-la de muitos mais detalhes se olhamos para o que está realmente acontecendo, se olhamos para as luitas que estám acontecendo. Nom necessariamente copiando-os, senom analisando-os criticamente, olhando para a maneira em que certos movimentos tenhem tentado articular formas de acçom autónomas, desenvolvendo o conceito de dignidade, quebrando as separações entre a política e a economia, e criando novas formas organizacionais.

Para mim a revolta zapatista tem sido de umha enorme importância; tanto a revolta de 1994 como toda a experiência dos últimos dez anos. Acho que por duas razões: em parte, porque eles se levantárom, se rebelárom, se revoltárom numha altura em que parecia que já nom havia espaço para a revolta na sociedade moderna, no capitalismo moderno. Mas é muito mais que isso. É tamém o facto de terem proposto uma reformulaçom de todo o conceito de rebeliom, toda a noçom do que significa revoluçom ou revolta. E acho que parte da questom é justamente o de propor umha lógica diferente, umha linguage diferente, umha outra temporalidade, umha outra espacialidade, que nom é simétrica com a linguage e a temporalidade do capital e do estado. Por exemplo, após a primeira insurreiçom um dos primeiros acontecementos importantes, penso eu, foi o "diálogo de San Andrés," o diálogo entre o governo mexicano e os zapatistas na cidade de San Andrés em Chiapas. Normalmente, um pensaria nisto como num diálogo, umha negociaçom como um processo simétrico entre os dous lados. E eu acho que umha das cousas mais importantes foi a de que os zapatistas desde o início deixárom claro, em primeiro lugar, que nom estavam indo para negociar e, por outro lado, que nom se tratava de um processo simétrico. O facto de nom ser um processo simétrico estava sublinhado polo seu vestido, por exemplo, ao insistir em usar o seu próprio vestido tradicional; na sua insistência, polo menos numha ocasiom, em utilizar a sua própria língua, e nom simplemente ceder ao uso do espanhol. E um dos pontos interessantes que surgiu foi a questom do tempo, por exemplo. Num ponto, quando os dous lados, o governo e os zapatistas, tinham chegado a umha proposta de acordo provisório, os zapatistas dixérom: "bem, temos que presentar e discutir esta proposta com o nosso povo antes de decidir". E o governo dixo, "nom, devem decidir, precisamos umha resposta dentro de dous dias." E os zapatistas dixérom, "isso é um disparate, você tem que entender que temos umha diferente conceiçom do tempo, e que temos processos de discussões". E o representante do governo dixo: "Como podem dizer que tenhem um tempo diferente? Vejo que você está usando o mesmo relógio japonês que levo eu". O comandante Tacho respondeu que para essas pessoas do governo, ''tempo'' equivale a cronómetro. Para nós, nom é este o significado de "tempo", para nós "tempo" é algo diferente. E demorou cerca de dous meses em dar a sua resposta. Mas é precisamente essa consciência a que dende o início dotava à rebeliom de confiança nas suas próprias estruturas, confiança na sua própria noçom do tempo, confiança no seu próprio senso de espaço. E esta idea de "tempo", por exemplo, está mui ligada à questom das estruturas democráticas, a toda a questom de insistir em que as decisões tenhem que ser alcançadas através de um processo de discussom da comunidade. Porque se se insiste em que as decisões tenhem que ser alcançadas através de um processo de discussom da comunidade, é óbvio que este processo leva muito tempo, e portanto propícia um sentido diferente do tempo. De modo que esta assimetria, esta falta de simetria entre a lógica da dominaçom, por um lado, e a lógica da revolta, por outro lado, é algo absolutamente fundamental para o movimento zapatista desde o início. E isto é enfatizado inúmeras vezes nos seus comunicados, no seu uso de histórias, piadas, poesias, etc. E todo isto, que parecia ser a primeira vista um tipo de decoraçom secundária ao processo da revolta, gradualmente apercebe-se como algo fundamental. Para a revolta que eles estám a propor, é fulcral insistir numha forma diferente de conceber o mundo e as relações entre as persoas. Nom é o conceito tradicional de revoluçom, o qual, penso eu, estava mui baseado numha metáfora militar, na idea de que se tem essencialmente um choque entre dous exércitos. E que para derrotar o inimigo, basicamente se aceitam os métodos do inimigo. Um exército a derrotar outro exército, o qual está organizado exactamente da mesma maneira que o primeiro. E a mim parece-me mui importante que os zapatistas romperam com todo isto, e que eles digam, nom, nom é isso. A forma de revolta, o caminho à rebeliom está a desenvolver umha linguage e umha maneira de fazer as cousas, que o estado simplemente nom entende. E eles tenhem feito isso constantemente, umha e outra vez nos últimos dez anos.

Muitas vezes pensamos no capitalismo e no problema da revoluçom em termos da forma de destruir este capitalismo. Temos que romper com isso, simplemente porque se pensamos em termos de como podemos destruir o capitalismo, rapidamente nos convencemos de que é impossível. Já que ao pensar em destruir o capitalismo imaginamo-lo como o grande monstro que é, este enorme monstro com os seus grandes exércitos, com o seu sistema de ensino, com o seu control dos meios de comunicação, com o seu control dos recursos materiais, etc. E aqui estamos nós, um pouco perdidos, e, como podemos chegar a destruir esse grande monstro? A minha tese é que temos que abandoar esta metáfora da destruiçom e pensar nisso de outras maneiras.

O capitalismo nom existe porque nós o criássemos no século XIX nem no século XX nem em qualquer momento. O capitalismo existe hoje só porque nós o criamos hoje. Se manhã nom o criássemos, nom existiria. Parece ter umha duraçom independente, mas isso nom é assi. Em realidade, o capital depende dia a dia da nossa criaçom de capital. Se manhã ficamos todos na cama o capitalismo deixará de existir. Se deixamos de criá-lo, deixará de existir. Pensar o capitalismo em termos de como podemos deter a sua criaçom, pensar sobre a questom da revoluçom, nom vai resolver os problemas. Nom significa que o capitalismo realmente vaia desaparecer manhã -ou quem sabe, mas é provável que nom o faga. Mas, se pensarmos na revoluçom em termos de como parar de criar capitalismo, entom estamos de algumha maneira dissolvendo a image do capitalismo como este enorme monstro que se opom a nós. E podemos começar a abrir possibilidades, criar umha nova esperança e um novo modo de pensar a revoluçom e a transformaçom da sociedade.

Umha sociedade ideal deveria poder-se criar ela mesma. Ao se auto-criar, autodeterminaria-se, polo que nom teria sentido projetar umha organizaçom ideal, já que esta seria criada pola própria sociedade. E umha sociedade auto-criada pode decidir um dia viver numha sociedade diferente a aquela na que viveu onte.

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