quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Paul Lafargue: O direito à preguiça (I)

Como anunciaramos, reproduzimos a continuaçom a primeira parte (num próximo post virá a segunda) da obra de Paul Lafargue do ano 1883, "O direito à preguiça". Obra na que, por certo, se nos menciona aos galegos, incluindo-nos entre as "raças para quem o trabalho é umha necessidade orgânica". Triste sino o nosso!


Introduçom


O Sr. Thiers, no seo da Comissom sobre a Instruçom Primária de 1849, dizia:

"Quero tornar a influência do clero todo-poderosa, porque conto com el para propagar esta boa filosofia que ensina ao home que el veu a este mundo para sufrir e nom aquela outra filosofia que, polo contrário, di ao home: ‘Goza’."

O Sr. Thiers formulava a moral da classe burguesa cujo egoísmo feroz e inteligência estreita encarnou.

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A burguesia, quando loitava contra a nobreza, apoiada polo clero, defendeu o livre exame e o ateísmo; mais, triunfante, mudou de tom e de comportamento e hoje conta apoiar na religiom a sua supremacia econômica e política. Nos séculos XV e XVI, tinha alegremente retomado a tradiçom pagã e glorificava a carne e as suas paixões, que eram reprovadas polo cristianismo; atualmente, colmada de bens e de prazeres, renega das ensinanças dos seus pensadores, os Rabelais, os Diderot, e prega a abstinência aos assalariados. A moral capitalista, lamentável paródia da moral cristã, fulmina com o anátema o corpo trabalhador; toma como ideal reduzir o produtor ao mínimo mais restrito de necessidades, suprimir as suas alegrias e as suas paixões e condená-lo ao papel de máquina entregando trabalho sem tréguas nem piedade.
Os socialistas revolucionários tenhem que recomeçar o combate que os filósofos e os panfletários da burguesia já travaram; tenhem que atacar a moral e as teorias sociais do capitalismo; tenhem que demolir, nas cabeças da classe chamada à acçom, os preconceitos sementados pola classe reinante; tenhem que proclamar, no rostro dos hipócritas de todas as morais, que a terra deixará de ser o val de bágoas do trabalhador: que, na sociedade comunista do futuro que fundaremos "pacificamente se possível, senom violentamente", as paixões dos homens terám renda curta, porque "todas som boas pola sua natureza, apenas temos de evitar a sua má utilizaçom e os seus excessos" (1), e só serám evitadas polo seu mútuo contrabalançar, polo desenvolvimento harmônico do organismo humano, porque, di o Dr. Beddoe, "só quando umha raça atinge o seu punto máximo de desenvolvimento físico é que ela atinge o seu mais elevado nível de energia e de vigor moral". Era esta tamém a opiniom do grande naturista Charles Darwin (2)

A refutaçom do direito ao trabalho, que reedito com algumhas notas adicionais, foi publicado no semanário L'Egalité de 1880, segunda parte.

Prisom de Sainte-Pélagie, 1883.

Paul Lafargue


Notas da Introduçom:

(1) Descartes, As Paixões da Alma.
(2) Doutor Beddoe, Memoirs of the Anthropological Society; Ch. Darwin, Descent of man.



I - Um Dogma Desastroso

"Sejamos preguiçosos em todo, exceto em amar e em beber, exceto em sermos preguiçosos." LESSING

Umha estranha loucura apoderou-se das classes operárias das nações onde reina a civilizaçom capitalista. Esta loucura arrastra consigo misérias individuais e sociais que hai dous séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixom moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progénie. Em vez de reagir contra esta aberraçom mental, os cregos, os economistas, os moralistas tenhem sacrossantificado o trabalho. Homes cegos e limitados, quigérom ser mais sábios do que o seu Deus; homes fracos e desprezáveis, quigérom reabilitar aquilo que o seu Deus maldizira. Eu, que nom confesso ser cristião, economista nem moralista, recuso admitir os seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões da sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, face às terríveis conseqüências do trabalho na sociedade capitalista.

Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda degeneraçom intelectual, de toda deformaçom orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por umha récua de bípedos, com a pesada besta da granja normanda que lavra a terra, carrega o estrume, que pom no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre salvage, que os missionários do comércio e os comerciantes da religiom ainda nom corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas (1)

Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço da beleza nativa do home, é preciso ir procurá-lo nas nações onde os preconceitos econômicos ainda nom desenraizárom o ódio ao trabalho. Espanha, que infelizmente degenera, ainda se pode gabar de possuir menos fábricas do que nós prisões e cuarteis; mais o artista regozija-se ao admirar o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e flexível como umha barra de aceiro; e o coraçom do home sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esfarrapada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em cujo país o animal primitivo nom está atrofiado, o trabalho é a pior das escravitudes (2). Os Gregos da grande época tamém só tinham desprezo polo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o home livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Tamém era a época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia conquistar aginha. Os filósofos da antigüidade ensinavam o desprezo polo trabalho, essa degradaçom do home livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses: O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit (3)

Cristo pregoou a preguiça no seu sermom na montanha: "Contemplai o crecemento dos lírios dos campos, eles nom trabalham nem fiam e, porém, digo-vos que Salomom, em toda a sua glória, nom se vestiu com maior brilho."(4) Jeová, o deus barbudo e irado, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; despois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade.
Em contrapartida, quais som as raças para quem o trabalho é umha necessidade orgânica? Os "Auvergnats"; os Escoceses, esses "Auvergnats" das ilhas britânicas; os Galegos, esses "Auvergnats" da Espanha; os Pomeranianos, esses "Auvergnats" da Alemanha; os Chineses, esses "Auvergnats" da Ásia. Na nossa sociedade, quais som as classes que amam o trabalho polo trabalho? Os labregos propietários, os pequeno-burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos polo hábito nas suas tendas, mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e nunca se endireitam para olhar com vagar para a natureza.

E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traiçoando os seus instintos, esquecendo-se da sua missom histórica, deixou-se perverter polo dogma do trabalho. Duro e terrível foi o seu castigo. Todas as suas misérias individuais e sociais provenhem da sua paixom polo trabalho.

Notas do Capitulo 1:

(1) Os exploradores europeus param marabilhados diante da beleza física e da atitude orgulhosa dos homes das tribos nômadas primitivas, nom manchadas polo que Paeppig chamava o "bafo envenenado da civilizaçom". Ao falar dos aborígens das ilhas da Oceania, lord George Champbell escreve: "No mundo nom hai povo que impressione mais à primeira vista. A sua pel lisa e de um tom ligeiramente acobreado, os seus cabelos louros e ondulados, o seu belo e alegre rostro, numha palavra, toda a sua persoa formava umha nova e esplêndida mostra do genus homo; o seu aspecto físico dava a impressom de umha raça superior à nossa." Os civilizados da Roma antiga, os Césares, os Tácitos, contemplavam com a mesma admiraçom os germanos das tribos comunistas que invadiam o Império Romano. - Tal como Tácito, Salviano, o sacerdote do século V, a quem chamaram o mestre dos bispos, apresentava os bárbaros como exemplo aos civilizados e aos cristiãos: "Somos impúdicos no meio do bárbaros, que som mais castos do que nós. Mais do que isso, os bárbaros ficam magoados com a nossa lascívia, os Godos nom suportam que haja entre eles libertinos da sua naçom; entre eles, só os Romanos, polo triste privilégio da sua nacionalidade e do seu nome, tenhem o direito de serem impuros. [A pederástia estava entom em grande moda entre os pagãos e os cristiãos...] Os oprimidos vam para junto dos bárbaros procurar a humanidade e um abrigo" (De Gubernatione Dei). - A velha civilizaçom e o cristianismo nacente corromperam os bárbaros do velho mundo, tal como o cristianismo envelhecido e a moderna civilizaçom capitalista corrompem os salvages do novo mundo. O Sr. F. le Play, cujo talento de observador devemos reconhecer, mesmo quando se repelem as suas conclusões sociológicas, manchadas de proudhomismo filantrópico e cristião, di no seu livro Les Ouvriers européens ("Os Operários Europeus") (1885): "A propensom dos Bachkires para a preguiça [os Bachkires são pastores seminômadas da vertente asiática dos Urais], as distrações da vida nômada, os hábitos de meditaçom que fam nacer nos indivíduos mais dotados comunicam por vezes a estes umha distinçom de maneiras, umha subtileza de inteligência e de Juízo que raramente se notam no mesmo nível social numha civilizaçom mais desenvolvida... O que mais lhes repugna som os trabalhos agrícolas; fam todo exceto aceitar a profissom de agricultor." De feito, a agricultura é a primeira manifestaçom do trabalho servil na humanidade. Segundo a tradiçom bíblica, o primeiro criminal, Caim, é um agricultor.

(2) O provérbio espanhol di: Descansar es salud (Descansar é saúde).

(3) Ó Melibeu, um Deus deu-nos esta ociosidade. Virgílio, Bucolicas (Ver apêndice).

(4) Evangelho segundo São Mateus, cap. VI.



II- Benções do Trabalho


Em 1770 apareceu em Londres um escrito anônimo titulado: An Essay on Trade and Commerce (1). Fizo na época um certo barulho. O seu autor, grande filantropo, indignava-se polo feito de "a plebe manufatureira da Inglaterra ter metido na cabeça a idea fixa de que na qualidade de Ingleses todos os indivíduos que a componhem tenhem, por direito de nacemento, o privilégio de serem mais livres e mais independentes do que os operários de qualquer outro país da Europa. Esta idea pode ter a sua utilidade para os soldados cuja bravura estimula, mais quanto menos os operários das manufaturas estiverem imbuídos dela, tanto melhor para eles mesmos e para o Estado. Os operários nunca deveriam considerar-se independentes dos seus superiores. É extremamente perigoso alentar semelhantes manias num Estado comercial como o nosso, onde talvez sete oitavos da populaçom tenham pouca ou nengumha propiedade. A cura nom será completa enquanto os nossos pobres da indústria nom se resignarem a trabalhar seis dias pola mesma suma que ganham agora em quatro".

Assi, cerca de um século antes de Guizot, pregava-se abertamente em Londres o trabalho como umha trava às nobres paixões do home. "Quanto mais os meus povos trabalharem, menos vícios existirám", escrevia Napoleom desde Osterode no dia 5 de Maio de 1807. "Eu som a autoridade [...] e estaria disposto a ordenar que ao domingo, passada a hora dos ofícios divinos, as tendas estivessem abertas e os operários fossem para o seu trabalho." Para extirpar a preguiça e curvar os sentimentos de orgulho e de independência que esta gera, o autor de Essay on Trade propunha encarcerar os pobres nas casas ideais de trabalho (ideal workhouses) que se tornariam "casas de terror onde se fariam trabalhar 14 horas por dia, de tal maneira que, substraído o tempo das comidas, ficariam 12 horas de trabalho completas".

Doze horas de trabalho por dia, eis o ideal dos filantropos e moralistas do século XVIII. Como ultrapassamos esse nec plus ultra! As oficinas modernas tenhem-se tornado casas ideais de correçom onde se encerram as massas operárias, onde se condena a trabalhos forçados, durante 12 e 14 horas, nom só os homes, como tamém as mulheres e os nenos (2). É dizer que os filhos dos heróis do Terror se deixárom degradar pola religiom do trabalho até o punto de aceitarem despois de 1848, como umha conquista revolucionária, a lei que limitava o trabalho nas fábricas a doze horas; proclamavam, como um princípio revolucionário, o direito ao trabalho. Que vergonha para o proletariado francês! Só escravos teriam sido capazes de umha tal baixeza. Um grego dos tempos heróicos teria necessitado vinte anos de civilizaçom capitalista para concebir tal envilecimento.

E se as dores do trabalho forçado, se as torturas da fame se abatérom sobre o proletariado, mais numerosas que as langostas da Bíblia, foi porque el as chamou. Este trabalho, que em Junho de 1848 os operários reclamavam de armas na mão, impugérom-no eles às suas famílias; entregárom, aos barões da indústria, as suas mulheres e os seus filhos. Com as suas própias mãos, demolírom o lar, com as suas própias mãos, secárom o leite das suas mulheres; as infelizes, grávidas e amamentando os seus bebês, tivérom de ir para as minas e para as manufaturas a dobrar o lombo e esgotar os nervos; com as suas própias mãos, quebrárom a vida e vigor dos seus filhos. - Que vergonha para os proletários! Onde é que estám essas currilheiras de que falam as nossas trovas e contos antigos, ousadas nas afirmações, francas de boca, amantes de Baco? Onde estám essas mulheres prazenteiras, sempre apressadas, sempre a cozinhar, sempre a cantar, sempre a sementar a vida gerando a alegria, dando à luz sem dores filhos sãos e vigorosos?... Temos hoje as raparigas e as mulheres da fábrica, insignificantes flores de pálidas cores, com um sangue sem rutilância, com o estômago deteriorado, com os membros sem energia!... Nunca conhecérom o prazer, nem seriam capazes de falar del atrevidamente! E os nenos? Doze horas de trabalho para os nenos.

O miséria! - Mais todos os Jules Simon da Academia das Ciências Morais e Políticas, todos os Germiny da jesuitaria, nom teriam podido inventar um vício mais embrutecedor para a inteligência dos nenos, mais corruptor dos seus instintos, mais destruidor do seu organismo do que o trabalho na atmosfera viciada da oficina capitalista.

A nossa época é, dim, o século do trabalho; de feito, é o século da dor, da miséria e da corrupçom.
E, no entanto, os filósofos, os economistas burgueses, dende o penosamente confuso Augusto Comte até ao ridiculamente claro Leroy-Beaulieu; os intelectuais burgueses, desde o charlatanescamente romântico Victor Hugo até ao ingenuamente grotesco Paul de Kock, todos entoárom cantos nauseabundos em honra do deus Progresso, o filho mais velho do Trabalho. Ao ouvi-los, a felicidade ia reinar sobre a terra: já se sentia a sua chegada.. Iam aos séculos passados vasculhar o pó e a miséria feudais para traerem sombrios contrastes às delícias dos tempos presentes. - Acaso nos fatigaram, esses saciados, esses satisfeitos, outrora ainda membros da domesticidade dos grandes senhores, hoje criados de pena da burguesia, generosamente alugados; acaso nos fatigaram com o labrego do retórico La Bruyere? Ora, eis o brilhante quadro dos prazeres proletários no ano do progresso capitalista de 1840, pintado por um dos deles, polo Dr. Villermé, membro do Instituto, o mesmo que, em 1848, fizo parte daquela sociedade de sábios (Tiers, Cousin, Passy, Blanqui, o acadêmico, estavam alá) que propagou nas massas os disparates da economia e da moral burguesa.

É da Alsácia manufatureira que fala Villermé, da Alsácia dos Kestner, dos Dolífus, essas flores da filantropia e do republicanismo industrial. Mais antes que o doutor esboce diante de nós o quadro das misérias proletárias, escoitemos um manufatureiro alsaciano, o Sr. Th. Mieg, da Casa Dolífus, Mieg e C.ª, descrivindo a situaçom do artesão da antiga indústria:
"Em Mulhouse, hai cinqüenta anos (em 1813, quando nacia a moderna indústria mecânica), os operários eram todos filhos do solo, que habitavam a cidade ou as aldeas próximas e possuíam quase todos umha casa e moitas vezes um pequeno terreno." (3)

Era a idade de ouro do trabalhador. Mais entom a indústria alsaciana nom inundava o mundo com os seus tecidos de algodom e nom tornava milionários os seus DolIfus e os seus Koechlin. Mais vinte e cinco anos despois, quando Villermé visitou a Alsácia, o minotauro moderno, a oficina capitalista tinha conquistado a regiom; na sua bulimia de trabalho humano, tinha arrancado os operários dos seus lares para melhor os torcer e para melhor espremer o trabalho que continham. Era aos milhares que os operários acorriam ao asubio da máquina.

"Um grande número, di Villermé, cinco mil em dezassete mil, eram obrigados, pola carestia das rendas, a instalar-se nas aldeas vizinhas. Alguns habitavam a duas léguas e quarto da fábrica onde trabalhavam. Em Mulhouse, em Dornach, o trabalho começava às cinco horas da manhã e acabava às cinco horas da tarde tanto no Verão como no Inverno [...]. Era preciso vê-los chegar todas as manhãs à cidade e vê-los partir à noite. Hai entre eles umha multitude de mulheres pálidas, fracas, caminhando de pés descalços por cima da lama e que, à falta de guarda-chuva, traem, atirados sobre a cabeça, quando chove ou neva, os aventais e as saias de cima para protegerem o rostro e o pescoço, e um número mais considerável de nenos pequenos nom menos sujos, nom menos pálidos e macilentos, cobertos de farrapos, todos engordurados do óleo dos teares que lhes cai em cima enquanto trabalham. Estes últimos, melhor preservados da choiva pela impermeabilidade das suas roupas, nem sequer tenhem no braço, como as mulheres de que acabamos de falar, um cesto onde estám as provisões do dia; mais traem na mão, ou escondem debaixo do seu casaco ou como podem, o bocado de pão que os deve alimentar até à hora do seu regresso a casa.

Assi, à fatiga dum dia de trabalho excessivamente longo, visto que tem polo menos quinze horas, vem juntar-se para estes desgraçados a das idas e vidas tam freqüentes, tam penosas. Daqui resulta que à noite chegam às suas casas oprimidos pola necessidade de dormir e que no dia seguinte saem antes de terem repousado completamente para se encontrarem na oficina à hora da abertura."

Eis agora as cubículos onde se amontoavam aqueles que habitavam na cidade:

"Vim, em Mulhouse, em Dornach e nas casas vizinhas, dessas miseráveis instalações onde dormiam duas famílias cada umha a seu canto, sobre a palha colocada sobre o tijolo e retida por duas táboas... Esta miséria em que vivem os operários da indústria do algodom no distrito do Alto-Reno é tam profunda, que produz este triste resultado: enquanto que nas famílias dos fabricantes, mercadores de panos, diretores de fábricas, a metade dos nenos atinge os vinte e um anos, essa mesma metade deixa de existir antes mesmo de completar os dous anos nas famílias de tecelões e de operários de fábricas de fiaçom de algodom."

Falando do trabalho da oficina, Villermé engade:"Nom é um trabalho, umha tarefa, é uma tortura e infligem-na a nenos de seis a oito anos. [...] É esse longo suplício de todos os dias o que mina sobretodo os operários nas fábricas de fiaçom de algodom."

E, a propósito da duraçom do trabalho, Villermé observa que os forçados das galés só trabalhavam dez horas, os escravos das Antilhas umha média de nove horas, enquanto que existia, na França que tinha feito a Revoluçom de 1789, que tinha proclamado os pomposos Direitos do Home, fábricas onde o dia de trabalho era de dezasseis horas, nas quais davam aos operários umha hora e meia para as refeições (4).

O miserável aborto dos princípios revolucionários da burguesia! O lúgubre presente do seu deus Progresso! Os filantropos proclamam benfeitores da humanidade aqueles que, para se enriquecerem na ociosidade, dam trabalho aos pobres; mais valia sementar a peste ou envenenar as fontes do que erguer umha fábrica no meio de umha povoaçom rústica. Introduzam o trabalho de fábrica, e adeus alegria, saúde, liberdade; adeus a todo o que fizo a vida bela e digna de ser vivida (5)

E os economistas continuam a repetir aos operários: Trabalhem para aumentar a fortuna social! E, no entanto, um economista, Destutt de Tracy, responde-lhes: nas nações pobres o povo está à sua vontade; é nas nações ricas que de um modo geral é pobre.

E o seu discípulo Cherbuliez continua: "Os própios trabalhadores, ao cooperarem na acumulaçom dos capitais produtivos, contribuem para o acontecimento que, mais tarde ou mais cedo, os deve privar de umha parte do seu salário."

Mais, ensordecidos e tornados idiotas polos seus própios berros, os economistas continuam a responder: trabalhai, trabalhaisempre para criardes o vosso bem-estar! E, em nome da bondade cristã, um padre da Igreja Anglicana, o reverendo Townshend, prega: "trabalhai, trabalhai noite e dia! Ao trabalharem, fazedes crecer a vossa miséria e a vossa miséria dispensa-nos de vos impor o trabalho pola força da lei. A imposiçom legal do trabalho exige demasiado esforço, demasiada violência e fai demasiado barulho; a fame, polo contrário, nom só é umha pressom calma, silenciosa, incessante, como tamém o móbil mais natural do trabalho e da indústria, ela provoca tamém os mais poderosos esforços."

Trabalhai, trabalhai, proletários, para aumentar a fortuna social e as vossas misérias individuais, trabalhai, trabalhai, para que, tornando-vos mais pobres, tenhades mais razom para trabalhar e para serdes miseráveis. Eis a lei inexorável da produçom capitalista.

Porque, ao prestarem atençom às insidiosas palavras dos economistas, os proletários se entregaram de corpo e alma ao vício do trabalho, precipitam toda a sociedade numha destas crises de superproduçom que convulsionam o organismo social. Entom, porque hai superabundância de mercadorias e penúria de compradores, as oficinas pecham e a fame fustiga as populações operárias com o seu chicote com mil loros. Os proletários, embrutecidos polo dogma do trabalho, nom compreendem que é o supertrabalho que infligiram a si próprios durante o tempo da pretensa prosperidade a causa da sua miséria presente, em vez de correrem ao celeiro de trigo e de gritarem: "Temos fome e queremos comer!... si, nom temos nem umha moeda, mais, pobres como estamos, fomos nós quem colheitamos o trigo e vendimamos a uva... " - Em vez de cercarem os armazéns do Sr. Bonnet de Jujureux, o inventor dos conventos industriais, e de clamar: "Sr. Bonnet, aqui estám as vossas operárias ovalistas (6), moulineuses (7), fiandeiras, tecedeiras, elas tremem de frio nos seus tecidos de algodom passajados de modo a condoer os olhos de um judeu e, no entanto, foram elas que fiaram e teceram os vestidos de seda das cocotes de toda a cristandade. As desgraçadas, trabalhando treze horas por dia, nom tinham tempo de pensar na "toilette", agora, elas estám desempregadas e podem ostentar um grande luxo com as sedas que trabalharam. Mal perderam os dentes de leite, dedicaram-se à sua fortuna e viveram na abstinência; agora, elas têm tempos de lezer e querem gozar um pouco dos frutos do seu trabalho. Vamos, Sr. Bonnet, entregue as suas sedas, o Sr. Harmel fornecerá as suas musselinas, o Sr. Pouyer-Quertier os seus paninhos, o Sr. Pinet as suas botinas para os seus queridos pezinhos frios e húmidos... Vestidas dos pés à cabeça, dar-vos-á prazer contemplá-las. Vamos, nada de vacilações, o Sr. é amigo da humanidade, nom é verdade? E cristão ainda por riba! Ponha à disposiçom das suas operárias a fortuna que estas lhe construíram com a carne da sua carne. - É amigo do comércio? - Facilite a circulaçom das mercadorias; eis consumidores acabados de encontrar; abra-lhes créditos ilimitados. É obrigado a fazê-lo a negociantes que nom conhece de parte nenhuma, que nom lhe deram nada, nem sequer um vaso de auga. As suas operarias pagarám como puderem: se, no dia do vencimento, elas fogem e deixam protestar a letra, leva-las-á à falência e, se elas nom tiverem nada para penhorar, exigirá que elas lhe paguem em orações: elas enviarám-no ao paraíso, melhor do que os seus sacos negros com o nariz cheo de tabaco."

Em vez de se aproveitarem dos momentos de crise para umha distribuiçom geral de produtos e umha manifestaçom universal de alegria, os operários, morrendo à fame, vam bater com a cabeça contra as portas da oficina. Com rostros pálidos e macilentos, corpos enmagrecidos, discursos lamentáveis, assaltam os fabricantes: "Bom Sr. Chagot, excelente Sr. Schneider, dêem-nos trabalho, nom é a fame, mas a paixom do trabalho que nos atormenta!" E esses miseráveis, que mal tenhem forças para se manterem de pé, vendem doze e catorze horas de trabalho duas vezes mais barato que quando tinham trabalho durante um certo tempo. E os filantropos da indústria continuam a aproveitar as crises de desemprego para fabricarem mais barato.

Se as crises industriais seguem aos períodos de supertrabalho tam fatalmente como a noite segue ao dia, arrastando atrás de si o desemprego forçado, e a miséria sem saída, tamém levam à bancarrota inexorável. Enquanto o fabricante tem crédito, solta a rédea à raiva do trabalho, fai empréstimos, volta a fazer empréstimos para fornecer matéria-prima aos operários. Tem de se produzir, sem refletir que o mercado se obstrui e que, se as mercadorias nom chegarem a serem vendidas, as suas ordes de pagamento acabarám por se vencer. Acurralado, vai implorar ao Judeu, lança-se aos seus pés, oferece-lhe o seu sangue, a sua honra. "Um bocadinho de ouro seria-lhe mais útil, responde o Rothschild, tem 20 000 pares de meias em armazém, valem vinte soldos, compro-lhas por quatro soldos." Obtidas as meias, o Judeu vende-as a seis e a oito soldos e embolsa as bulicosas moedas de cem soldos que nom devem nada a ninguém: mais o fabricante recuou para melhor saltar. Chega finalmente o degelo e os armazéns despejam-se; lança-se entom tanta mercadoria polas janelas que nom se sabe como é que entraram pola porta. É em centenas de milhões que se cifra o valor das mercadorias destruídas: no século passado, queimavam-nas ou lançavam-nas à auga(8).

Mais antes de chegar a esta conclusom, os fabricantes percorreram o mundo à procura de colocaçom para as mercadorias que se amontoavam; forçam o seu governo a anexar Congos, a apoderar-se de Tonquim, a demolir com fogo dos canhões as muralhas da China, para aí darem saída aos seus tecidos de algodom. Nos séculos passados, era um duelo de morte entre a França e a Inglaterra para saber quem teria o privilégio exclusivo de vender na América e nas Indias. Milhares de homes joves e vigorosos purpurearam os mares com o seu sangue durante as guerras coloniais dos séculos XV, XVI e XVII.

Os capitais abundam como as mercadorias. Os financeiros já nom sabem onde colocá-los; vam entom para as nações felizes que passeam ao sol a fumar cigarros pôr caminhos de ferro, construir fábricas e importar a maldiçom do trabalho. E esta exportaçom de capitais franceses termina umha bela manhã em complicações diplomáticas: no Egito, a França, a Inglaterra e a Alemanha estavam prestes a agarrar-se polos cabelos para saber quais os usurários que seriam pagos em primeiro lugar; em guerras no México para onde som enviados os soldados franceses exercerem a profissom de oficial de diligências para encobrir más dívidas (9).

Estas misérias individuais e sociais, por moi grandes e numerosas que sejam, por eternas que pareçam, desaparecerám como as hienas e os chacais à aproximaçom do leom, quando o proletariado diga: "Quero isso." Mais para que venha a ter consciência da sua força, é preciso que o proletariado calque aos pés os preconceitos da moral cristã, econômica, livre-pensadora; é preciso que regresse aos seus instintos naturais, que proclame os Direitos da Preguiça, milhares de vezes mais nobres e sagrados que os tísicos Direitos do Home, digeridos polos avogados metafísicos da revoluçom burguesa; que se obrigue a trabalhar apenas três horas por dia, reservando o resto do dia para o lezer e a festa.

Até aqui, a minha tarefa tem sido fácil, tinha apenas que descrever males reais que todos nós conhecemos moi bem, infelizmente. Mais convencer o proletariado de que a palavra que lhe inocularam é perversa, que o trabalho desenfreado a que se dedica desde o início do século é o mais terrível flagelo que nunca atacou a humanidade, que o trabalho só se tornará um condimento aos prazeres da preguiça, um exercício benéfico para o organismo humano, umha paixom útil ao organismo social, quando seja prudentemente regulamentado e limitado a um máximo de três horas por dia, é umha tarefa árdua superior às minhas forças; só fisiologistas, higienistas, economistas comunistas poderám emprendê-la. Nas páginas que seguem, limitarei-me a demostrar que, atendendo aos meios de produçom modernos e à sua potência reprodutiva ilimitada, tem que se dominar a paixom extravagante dos operários polo trabalho e obrigá-los a consumir as mercadorias que produzem.

Notas do Capitulo 2:

(1) Um ensaio sobre o negócio e o comércio.

(2) No primeiro congresso de beneficência realizado em Bruxelas, em 1857, um dos mais ricos manufatureiros de Marquette, perto de Lilie, o Sr. Scrive, aplaudido polos membros do congresso, contava com a mais nobre satisfaçom dum dever cumprido: "Introduzimos alguns meios de distraçom para os nenos. Ensinamos-lhes a cantar durante o trabalho, a contar tamém mentres trabalham: isto distrai-nos e fai-lhes aceptar com corage aquelas doze horas de trabalho que som necessárias para lhes proporcionar os meios de existência" - Doze horas de trabalho, e que trabalho! impostas a nenos que nom tenhem doze anos! - Os materialistas lamentarám sempre que nom haja um inferno para nel pôr estes cristãos, esses filantropos, assassinos da infáncia!

(3) Discurso pronunciado na Sociedade Internacional de Estudos Práticos de Economia Social de Paris em Maio de 1863 e publicado em L'Economiste Français da mesma época.

(4) L.-R. Villermé, "Tableau de l'État Physique et Moral des Ouvriers dans les Fabriques de Coton, de Laine et de Soie" (Quadro do Estado Físico e Moral dos Operários nas Fábricas de Algodão, de Lá e de Seda), 1840. Nom era polo feito dos Koechlin e doutros fabricantes alsacianos serem republicanos, patriotas e filantropos protestantes que tratavam desta maneira os seus operários; porque Blanqui, o acadêmico, Reybaud, o protótipo de Jerôme Paturot, e Jules Simon, o mestre Jacques político, constataram as mesmas amenidades para a classe operária nos fabricantes moi católicos e moi monárquicos de Lilie e de Lyon. Trata-se de virtudes capitalistas que se harmonizam às mil maravilhas com todas as convicções políticas e religiosas.

(5) Os índios das tribos guerreiras do Brasil matam os seus doentes e os seus velhos; testemunham a sua amizade acabando com umha vida que já nom é animada por combates, por festas, por danças. Todos os povos primitivos deram aos seus estas provas de afeiçom: os Messagetas do mar Cáspio (Heródoto), bem como os Wens da Alemanha e os Celtas da Gália. Nas igrejas da Suécia, ainda hai pouco se conservavam paus chamados paus familiares que serviam para libertar os parentes das tristezas da velhice. Como estám degenerados os proletários modernos para aceitarem com paciência as terríveis misérias do trabalho de fábrica!
(6) Ovaliste: operário que torna as sedas ovais.

(7) Moulineur: operário que fia e torce mecanicamente os fios de seda crua.

(8) No congresso industrial realizado em Berlim em 21 de Janeiro de 1879, avaliava-se em 568 milhares de francos o prejuízo que a indústria de ferro tinha sofrido na Alemanha durante a última crise.

(9) La Justice, do Sr. Clemenceau, na sua parte financeira, dizia a 6 de Abril de 1880: "Ouvimos defender a opiniom de que, à excepçom da Prússia, os milhares da guerra de 1870 foram igualmente perdidos pola França, e isto sob a forma de empréstimos periódicamente emitidos para o equilíbrio dos orçamentos estrangeiros; esta é tamém a nossa opiniom." Avalia-se em cinco mil milhões o prejuízo dos capitais ingleses nos empréstimos às Repúblicas da América do Sul. Os trabalhadores franceses nom só produzírom os cinco mil milhões pagos ao Sr. Bismarck, como continuam a servir os juros da indenizaçom de guerra aos Oluvier, aos Girardin, aos Bazaine e outros portadores de títulos de rendimento que originaram a guerra e a derrota. No entanto, resta-lhes um prêmio de consolaçom: esses milhões nom ocasionarám guerra de recuperaçom.

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