segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

O rumo estratégico do Bloco de Esquerda e a questom da contracultura

Em março do 2006 o Bloco da Esquerda abriu um debate interno sobre o rumo estratégico a tomar. Isto nom é algo comum num partido político, sobre todo tendo em conta que nom se trataba de umha assembleia ou convençom nacional, nem havia nengumha situaçom de emergência que atender. Mais atípico aínda foi o feito de que o documento para o debate que elaborou a sua direcçom se centrava em respostar três questões que foram colocadas por jornalistas de direitas. Um dos seus aspectos mais interessantes é a reflexom sobre a vigência ou, se se quer, a viabilidade, dumha mensage política de carácter contracultural. Trata-se dumha questom importante para aquelas forças políticas que, como o BE, defendam causas como a legalizaçom das drogas ou as liberdades sexuais. Achamos moi interessante o devandito documento (disponibilizado integramente na web do BE, aqui), cuja primeira parte reproduzimos a seguir.

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hippies...
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Este texto cumpre uma função distinta das resoluções que formam a tradição da actividade de direcção no Bloco. Em vez de se pronunciar sobre aspectos concretos da intervenção e sobre escolhas de curto prazo, como o faz normalmente a Mesa Nacional, ou sobre orientações de fundo, como o faz a Convenção, este texto é um relatório que propõe uma reflexão mais aberta sobre identidade e escolhas estratégicas. Visa discutir hipóteses de trabalho, interpretações, ideias e projectos sem que estejam necessariamente articulados com decisões e propostas políticas imediatas.

Este debate quer ajudar a definir prioridades para os próximos três anos, contribuindo para impulsionar o crescimento do Bloco como uma força determinante na luta social e política da esquerda em Portugal.

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Introdução: três desafios ao Bloco

Na sequência das eleições presidenciais, foram colocadas ao Bloco três questões muito interessantes e actuais. Foram apresentadas por opositores políticos, duas por José Manuel Fernandes, director do Público; e outra por Pedro Lomba, cronista do Diário de Notícias. A intenção dessas críticas - que não é independente da condenação militante que ambos alimentam contra o Bloco - é razoavelmente irrelevante para o propósito desta discussão, porque as questões interessam em si mesmas.

A primeira injunção de José Manuel Fernandes é esta: o tempo da contracultura acabou, e por isso as causas “fracturantes” do Bloco já não mobilizam. Assim sendo, o PS vai recuperar os votos perdidos e voltaremos ao business as usual.

A segunda questão de Fernandes é o contrário da primeira: o Bloco só poderia sobreviver se viesse a ser um partido igual ao PC no controlo de sindicatos e de movimentos sociais que lhe garantissem a fidelização de uma base social.

A terceira questão, de Pedro Lomba, resume as duas anteriores: o Bloco não teve maus resultados, mas se não cresce em cada eleição que disputa, não conseguiria alcançar o seu objectivo, que seria o de se tornar um parceiro governamental do PS.

Qualquer destas formulações mistura desejos com realidades, ou procura domesticar o sentido crítico e a força transformadora que o Bloco representa, condenando-o ao estatuto de parceiro anónimo e menor no sistema político de dominação. Em qualquer caso, responder em profundidade a estas questões é uma forma de sabermos para onde vamos e o que queremos.

Primeira questão: a contracultura acabou?

A primeira questão de José Manuel Fernandes nasce de uma irritação tantas vezes repetida, quer nos seus editoriais, quer em diversas análises de outros comentadores, em particular Pacheco Pereira, que insistem na denuncia da “conspiração esquerdista” que estaria por detrás da defesa anestesiante de “causas modernas”. Uma revista de direita, a Sábado, ao entrevistar candidatos do Bloco, costuma precedê-las de um editorial que apela aos leitores para “não votarem neles”, porque teme que não percebam o perigo. O antigo director do Expresso, José António Saraiva, escreveu vários editoriais a fulminar o Bloco, vacinando os seus leitores contra a ameaça.

A irritação resume-se em poucas palavras: o Bloco teria crescido como fenómeno urbano alimentado pela moleza do PS guterrista e pelas novas ideias nascidas da cultura modernista associada à “liberalização dos costumes”. Assim, teria emergido por fora do sistema político, nele se instalando abusivamente e sem permissão, o que não deixa de ser verdade.

Deduzir daqui que se trata de um fenómeno efémero é um pouco mais difícil.

Primeiro, porque o Bloco tem sete anos e foi no último que obteve os seus resultados eleitorais mais expressivos. Esse crescimento ocorreu em circunstâncias invariavelmente diferentes: quando Guterres governava, mas também quando esse governo entrou em colapso; quando a direita e a extrema-direita se coligaram no governo, mas também quando o PS conseguiu a maioria absoluta; e mesmo quando o PS se dividiu nas presidenciais, e do seu interior se apresentou um candidato capaz de polarizar muitos votos à sua esquerda. Este crescimento não foi efémero, mas contínuo. Em 7 anos – e independentemente das vicissitudes e particularidades de cada eleição – o espaço político do Bloco bem mais do que duplicou. Entre autárquicas, presidenciais e legislativas, ele traduz hoje a opinião de 4 a 6,5 por cento dos eleitores, sendo certo que o universo dos que já votaram Bloco pelo menos uma vez é seguramente bem maior do que as percentagens assinaladas. Estes factos, ocorridos num espaço de tempo muito curto, representam uma transformação profunda no mapa político português. Nada indica que essa mudança seja efémera, e muito menos pelos argumentos invocados.

Com efeito, as pulsões de modernização cultural a que se refere Fernandes não estão a desaparecer – parece ocorrer precisamente o contrário, se atendermos ao crescimento de movimentos pela paridade entre homem e mulher, ao número de países que tem legalizado o casamento de homossexuais, à facilidade com que a sociedade portuguesa aceitou e promoveu a mudança de política sobre as drogas, e sobretudo à abertura crescente de sectores dos movimentos populares em relação a todas as lutas pela igualdade. É verdade que o Bloco é o principal responsável pelo facto da agenda política nacional, nos últimos anos, ter passado a incluir um conjunto de novas exigências civilizacionais. E é também um facto que esses temas, ante tabu, têm feito o seu caminho na sociedade. Porque eles respondem ao atraso e ao atavismo que continuam ainda a marcar a paisagem das ideias e práticas sociais no nosso país.

Desse ponto de vista, o mérito do Bloco - na ausência de uma tradição asociativa popularizada neste tipo de causas - foi o de procurar sintonizar novas opiniões públicas, neste país ainda tão conservador, com os sinais do tempo. É seguro que esta coragem contribuiu para a emergência do bloquismo, enquanto fenómeno político novo. Mas esta agenda, ao contrário do que pensam os nossos críticos, está longe de estar esgotada.

O que mudou foi a capacidade que essas causas tiveram de contaminarem as opiniões e se popularizarem. O Bloco não “perde espaço” porque outros sejam hoje mais sensíveis a tal tipo de exigências. Pelo contrário.

Se formos mais exigentes sobre a ideologia que sustenta a “profecia” de Fernandes – o fim da contracultura que esvai o potencial de crescimento do Bloco – podemos verificar que há um intenso debate nas entranhas desta certeza.

O termo “contracultura” foi inventado nos Estados Unidos para designar a cultura hippy dos anos sessenta – o quer parece ter pouca ligação com o nosso debate político. Mas, se estudarmos os pontos de vista dos neo-conservadores que agora suscitam a questão, então pode compreender-se que a contracultura, para estes autores, se tornou um conceito muito mais amplo e ameaçador. Ao usarem o termo, estão a falar de outra coisa que não a cultura hippy.

Os teóricos neo-conservadores radicalizaram-se nos EUA em resposta à contestação dos anos 60 e 70, alegando que os jovens estavam possessos de niilismo, que Nietzsche destruía os seus referenciais e que a civilização ocidental estava em perigo. Tudo corria mal: Darwin desconstruira a criação bíblica, Marx desconstruía a sociedade e Freud ainda por cima desconstruía o ego. Mas o que mais incomodava os neoconservadores era a mobilização massiva de jovens contra a guerra do Vietname, e o desenvolvimento de uma vida alternativa à existência burguesa, representada pela tradicional american way of life.

Um dos mais representativos neo-conservadores, Allan Bloom, escreveu em 1987 um best-seller, “The Closing of the American Mind” (traduzido em português como “A Cultura Inculta”, pela Europa-América, 2001) que defendia que a raiz desta contracultura era “o projecto político do Iluminismo que queria precisamente tornar a Bíblia e outros livros antigos, inofensivos” (p.319). O Renascimento, o racionalismo, o espírito científico moderno, a ideia da técnica, a criação do sentido crítico com as artes contemporâneas, todos partilhariam responsabilidades na emergência desta contracultura que queria minar a autoridade social das elites.

Para estes neo-conservadores, a contracultura tem portanto um sentido muito preciso: representa a Modernidade que ofende a Antiguidade. A Modernidade é para eles a contracultura que persegue os grandes livros sagrados da cultura eterna – e por tanto religiosa – e que despreza as grandes cidades do conhecimento, Atenas e Jerusalém, berços da civilização ocidental.

Assim, a solução neo-conservadora é simples: regressar ao espírito dos “reis-filósofos” da Grécia, a “verdadeira comunidade” (p.325), que incorpora também o modelo de Esparta, que faz a guerra para decidir a paz, e que mantém a religião como cimento social. Curiosamente, muitos dos primeiros neo-conservadores, como o pai da corrente, Leo Strauss, nem sequer eram religiosos. Mas achavam que a religião devia ser promovida em nome da coesão social, e enquanto linguagem que as elites deviam dominar, para aquietar as massas. O Prémio Nobel da literatura Saul Bellow, que era amigo próximo de Bloom, retratou num romance, “Ravelstein”, a duplicidade entre a sua própria vida e este apego público aos grandes valores conservadores da família e da religião. Através desses valores, os neo-conservadores defendem o domínio da elite como fim em si mesmo e como destino para além de qualquer escolha democrática. Na melhor das hipóteses, a esta competiria confirmar e legitimar as elites.

João Carlos Espada, o nosso neo-conservador mais enfático, repete ritualmente esta vulgata nas suas crónicas no Expresso, quando levanta a voz contra os direitos civis dos homossexuais, a despenalização do aborto ou a ideia subversiva da paridade entre homens e mulheres. Espada explica interminavelmente como o ideal vitoriano de uma sociedade de gentlemen é o único modelo aceitável de partilha de responsabilidades. Deus, Pátria, Família e George W. Bush são por isso barreiras contra a “contracultura”, e essa guerra trava-se tanto nos jornais e televisões, como nas areias do Iraque.

Do outro lado, as culturas modernistas assumiram por todas as formas o desafio de romper e superar a Antiguidade, de laicizar o Estado – a defesa da liberdade religiosa foi a primeira grande batalha moderna pela liberdade –, de sustentar a democracia como expressão de direitos inclusivos, e de promover a redistribuição como forma essencial de justiça.

Essa agenda moderna, mais vasta e global do que a estritamente associada à “liberalização dos costumes”, também está muito longe de esgotada. Desse ponto de vista, a profecia de José Manuel Fernandes é duplamente inconsistente: subestima a força da corrente de opiniões que rompe com o conservadorismo e que, por essa razão, também não se revê nas esquerdas mais tradicionalistas e institucionalistas; e decreta os finados de um processo de transformação cultural e social que ainda se encontra na sua fase de desenvolvimento e ampliação.

Fernandes ignora ainda um outro factor, mais importante, que é o modo como o Bloco vem definindo a sua própria identidade: a primeira campanha eleitoral não se dedicou apenas nem principalmente à problemática das toxicodependências, por importante que ela fosse e é. Essa campanha foi marcada por uma proposta concreta e detalhada de reforma fiscal. Do mesmo modo, a última foi atravessada por uma proposta estratégica e concreta para a sustentabilidade da segurança social. O entendimento que o Bloco tem dos “temas fracturantes” é muito mais amplo do que os media definiram como tal. E assume para qualquer dessas rupturas uma ambição: a de que ganhem a maioria das opiniões e se traduzam em política.

Ao falar para a grande maioria da população, o Bloco constrói também um novo referencial de cultura de esquerda, que mobiliza tanto as causas do trabalho, como o conjunto dos referenciais da transformação social. Na realidade, o que é novo em Portugal é a afirmação de uma esquerda que considera que a luta emancipatória do Trabalho é inseparável de todos os outros referenciais de transformação e modernização. E que entre os diferentes conflitos que atravessam a sociedade não têm que se estabelecer hierarquias ou subordinações ao serviço de uma visão partidária, mas antes desenvolvimento combinado e articulação.

O Bloco nunca se prendeu nem prenderá a agendas isolacionistas, porque a abrangência é a que pode vencer o conservadorismo e o atraso do país. Essa agenda defende radicalmente o princípio da democracia responsável, das políticas sociais de desenvolvimento, do pleno emprego e a reinvenção do Estado social. Essa agenda modernista opõe-se também à guerra infinita e contribui para a mobilização do movimento social pela Paz, o facto mais marcante da renovação das esquerdas nos últimos anos. A própria ideia de socialismo é a mais moderna das noções da política, porque afirma uma visão do mundo onde a representação e a hierarquia são invadidas pela intervenção, decisão e controlo pelos produtores, pelos consumidores e pelos cidadãos. O socialismo quer radicalizar a democracia sobre todas as escolhas sociais fundamentais, ao mesmo tempo reclama a centralidade da responsabilidade individual nas opções privadas de vida. O socialismo é o exacto oposto do pensamento neoconservador.

Se esta agenda se puder transformar numa cultura, então terá uma força intrínseca muito superior à actual, e é nessa referência que se cria a força e a fidelidade de um campo político. Para o desenvolvimento do Bloco, precisamos que esta agenda se transforme numa cultura.

Existe ainda uma outra razão para que esta agenda lute pela conquista da hegemonia nas esquerdas e dispute o país: é uma agenda que aprende porque é tributária do pensamento revolucionário europeu, mas por isso mesmo não pode ignorar outras reflexões e pensamento de esquerda a nível internacional, nem muito menos os efeitos que o processo de globalização introduz no espaço e no tempo, comprimindo uns e outros. Sabemos que a resposta à globalização capitalista não se encerra nos marcos do Estado-nação, mas reclama a luta eficaz por outra globalização; e sabemos que os problemas colocados pelos movimentos migratórios de massas impõem novas reflexões e respostas que dêem saídas positivas aos confrontos identitários que se desenvolvem no espaço como nos Media que tudo mundializam. Episódios recentes, como o dos acontecimentos dos bairros de Paris ou a guerra dos cartoons, colocam na ordem do dia a urgência dessa reflexão, e rejeitam um ponto de vista exclusivista e “ocidental” para pensar o mundo, como rejeitam categoricamente qualquer imperialismo cultural – é através das suas diferenças e diversidades bem como dos direitos fundamentais de toda a população que se pode alicerçar uma globalização solidária. Uma esquerda socialista que cresce nos confrontos com as novas realidades, é uma esquerda que se actualiza e interroga com o mundo inteiro. Só assim poderá vencer.

A nossa resposta é portanto oposta à profecia de José Manuel Fernandes: a cultura da modernidade contra o conservadorismo não está a morrer, está bem viva e é na sua expansão que se cria a base de ampliação social do Bloco para disputar a maioria política.

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