quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Carlos Fernández Liria: O homem novo fascista e socialista

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Carlos Fernández Liria foi nos '80 guionista de "La Bola de Cristal", subversão televisiva camuflada de TV para nenos (lembram os slogans? "¡viva el mal, viva el capital!"; "¡viva la CIA, viva la economía!"). Hoje é escritor e professor de Filosofia na Universidade Complutense de Madrid, facetas que combina com o activismo político na esquerda anticapitalista. A seguir, um interessante artigo seu que atopei em GalizaLivre.
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NOTA: etiqueto-o como "revisionismo" por criticar aspectos do chamado "socialismo real"; sei que para alguns esta etiqueta será um disparate, mas é assim como falamos em outraesquerda ;-)

O homem novo fascista e socialista
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Ainda que, claro, os intentos políticos de estar à altura dos acontecimentos tivérom os seus efeitos. E fôrom estremecedores. O fascismo e o nacional-socialismo fôrom o intento de criar um ser humano capaz de dar alcance a umha História que havia tempo que o deixara mui atrás. Em lugar de deter a História ou de proteger-se dela, o que se propunha era conformar um ser humano que pudesse reivindicar toda a barbárie capitalista como obra sua. O resultado nom podia ser senom aterrador e, em efeito, foi aterrador. Desde os tempos de Hegel e de Schelling, sonhara-se na Alemanha com umha «mitologia da razom», capaz de unificar as potências que arrincavam da terra e as que provinham dos céus. Esperava-se que o martelo de Thor demolisse as catedrais góticas e se pugesse à cabeça das forças da História para alumiar umha nova época e um novo tipo de homem. A realizaçom deste sonho podia ter-se previsto desde os tempos de Marx (e em efeito, o seu amigo Enrique Heine profetizou-no com surpreendente clarividência): o capitalismo, que deixara ao homem tam atrás que agora corria o risco de sucumbir ao seu próprio êxito, selou umha aliança com todas as forças selvagens da pré-história, para as que o homem ainda ficava mais lá. [1] Raça e Indústria: eis um novo programa. Esperava-se ou augurava-se que só a raça ária seria capaz de pôr-se à altura das exigências capitalistas de industrializaçom e das crises económicas e os descalabros históricos com os que esta avançava sem freios face um futuro imprevisível. Havia que acelerar o processo e dar ao traste com todas as barreiras com as que a consistência neolítica do ser humano lograra conter a selvagem irrupçom da Natureza e da História. Porém, em lugar do grandioso espectáculo que anunciava Nietzsche, o que se avizinhou foi um episódio abjecto, ridículo e genocida, que denigrou o ser humano infinitamente mais do que o denigrasse a sua existência religiosa e pré-ilustrada. [2]


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Os países do denominado «socialismo real» também se empenhárom tercamente em pôr o homem à altura da História. Neste caso, todo há que dizê-lo, viam-se obrigados a fazer da necessidade virtude. Essa abstracta «História» da que falamos, estava chamando às suas portas desde o primeiro momento, em forma de invasom contra-revolucionária das grandes potências mundiais. Havia que estar à altura do capitalismo exterior ou assumir a derrota. Em resumo: havia que proletarizar a milhons de camponeses e havia que fazê-lo mui depressa. Para isso nom se reparárom em meios genocidas. Resultou entom que o mais lá ao que o homem podia aspirar era o homem proletarizado. Em efeito, houvo que decidir politicamente todo aquilo que no capitalismo se impunha com o automatismo do mercado. Para proletarizar a populaçom, o capitalismo nom necessitava para nada dumha «cultura proletária». Aí chegava com deixar eleger à cidadania entre a fome e o mercado de trabalho. De modo que os países capitalistas se podiam permitir o luxo de falar de independência civil, de liberdade de expressom, de divisom de poderes, de garantias jurídicas, enfim, como dizíamos, do melhor pedaço do pastel ideológico; a fome e o mercado garantiam, em qualquer caso, a qualidade do resultado. Polo contrário, nos países socialistas havia que edificar toda umha «cultura proletária», um «homem novo» que aceitasse de bom grau a proletarizaçom. Desde o princípio houvo que cantar as louvanças do trabalho voluntário (Lenine); em seguida, baralhou-se militarizar o processo laboral (Trotski); finalmente, decidiu-se policializá-lo e convertê-lo em objecto de culto (Staline). Com Mao chegou-se a criar umha verdadeira religiom de culto ao trabalho (embora pareça contraditório isso de umha «verdadeira religiom artificial»). Estar à altura dos Tempos, dar o «grande salto adiante» da História, converteu-se assim numha espécie de nova consistência cultural. Pudo-se dizer que a lógica religiosa do sacrifício colectivo foi o último agarradoiro neolítico que encontrou a populaçom para resignar-se a abandonar o neolítico. Mais umha vez, confirmava-se que mais lá do neolítico, antropologicamente só estava a pré-história (ou quiçá, simplesmente, um neolítico mais abjecto). O ser humano proletarizado que tam orgulhosamente alcançava a era nuclear (ou se punha à altura industrial dos países capitalistas exteriores), estava já antropologicamente tam degradado que se encontrava muito mais cerca da pré-história que um nambiquara ou umdogon. [3]

Os intentos facistas e socialistas de ir mais lá da maioria de idade própria do «direito burguês» desembocárom, como nom podia ser de outra forma, no mais cá dum infantilismo religioso. O caso é que o Direito é a única maneira prevista na história da filosofia para levantar-se sobre a consistência antropológica da religiom, a tradiçom e o costume. E claro, a cousa era como a filosofia o previra. Qualquer intento de erguer o vô por riba do Direito estava abocado a cair por debaixo dele. O Direito era o mais lá da Religiom; mais lá do Direito nom estava, por tanto, mais que a Religiom. Trás superar o direito burguês na «constituiçom mais democrática do mundo» (e trás executar, por certo, a 18 dos 30 comunistas que participaram na sua redacçom), Staline logrou consolidar o culto à pessoalidade. Todo um êxito da maioria de idade. E quando finalmente, após setenta anos de ateísmo oficial, caiu o muro de Berlim, resultou que todo o mundo guardara debaixo do colchom um ícone da virgem, um rosário ou um Corám.

Mais tarde, a tradiçom comunista seguiu empenhada no compromisso por forjar um «homem novo», sob tintes mais ou menos obreiristas, guevaristas ou cristaos. E quanto mais se empecinavam em buscar novidades para o homem, menos atençom prestavam ao que havia de novidoso em aquilo que sempre tiveram diante dos narizes: o cidadao. Na realidade, a ideia da cidadania era mui nova, porque nom tivera tempo de envelhecer: nada mais nascer, degradara-se no inferno da proletarizaçom; a vida política da cidadania naufragara no marasmo económico do capitalismo. Mas a escolástica marxista, empenhada em fazer do Direito umha ideologia burguesa, jamais se percatou da distância entre cidadania e proletarizaçom. Empenhou-se, mas bem, em que a questom da cidadania se esgotava no seu papel de coartada ideológica da proletarizaçom sob condiçons capitalistas. Em lugar do cidadao pensava-se em algo assim como o camarada. Todas as reflexons da Ilustraçom caiam em saco roto ao renunciar à ideia de cidadania em nome da solidariedade comunitária contra o egoismo individual, supostamente próprio da metnalidade burguesa. E o pior nom era já que ao renunciar ao indivíduo se estivesse inevitavelmente renunciando à liberdade. O pior era que, ao regalar assim todo o pensamento da Ilustraçom ao inimigo, botava-se mais lenha ao lume da pior estafa ideológica da classe dominante: a ideia de que capitalismo, democracia e estado de direito, de algum jeito, se copertencem. Assim, resulta que a esquerda anticapitalista se converteu na melhor propagandista de aquilo que pretendia combater.

Notas:

1. H. Heine, Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland. Sämtliche Schriften, Band III, Herausgegeben von Klaus Briegleb, Carl Hanser Verlag, München, 1971 / Alemanha. Universidade Autónoma de México, 1972 / Alianza Editorial, Madrid, 2009.

2. É mui aleccionadora a descriçom da «camaradaria» que fai Sebastian Haffner ao final da sua obra Historia de un alemán. Memorias 1914-1933 (Destino, Barcelona, 2006).

3. Os romances de Andréi Platónov som quiçá umha reflexom inquedante e desquiciada sobre o insólito desaguisado antropológico que supujo o empenho socialista de intentar alcançar por meios político o ritmo económico do capitalismo (cfr. por exemplo, Chevengur, Cátedra, Madrid, 1996). Como dizia em Sin vigilancia y sin castigo (Libertarias, 1998), a URSS foi o espelho antropológico do capitalismo exterior. É dizer, isso é o que teria que passar se o ser humano tivesse que decidir politicamente todo isso que ao capitalismo lhe sai só.

(FERNÁNDEZ LIRIA, Carlos. Originalmente publicado em castelão como "El hombre nuevo fascista y socialista", em: ALBA RICO, Santiago e Carlos FERNÁNDEZ LIRIA, El naufragio del hombre, Editorial Hiru, Hondarribia, 2010, pp. 117-121)

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